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domingo, março 15, 2009

Sobre aquele dia...

Acho que agora, passado um ano e meio, eu consigo falar daquele dia. Nao porque eu esqueci ou porque nao doa mais, muito pelo contrario, mas porque virou realidade, parte da minha rotina. E a gente se acostuma com rotina, com realidade. Mas naquela epoca, exatos um ano e sete meses atras, eu ainda lutava como se pudesse mudar esse curso que a minha vida tomava.
Era uma sexta-feira, dia 17 de agosto, quatro horas da tarde quando eu recebi a ligacao que eu, nos ultimos 8 meses, temia receber. Meu pai ligou gaguejando, segurando o choro. Eu lembro das minhas pernas comecarem a tremer, e ele soh conseguiu dizer: venha pra ca filha, venha. Na epoca eu morava em Sao Paulo, meus pais e minhas irmas em Curitiba.
Minha mae estava doente ha 8 meses. Lutando, bravamente diga-se de passagem, contra um cancer. Lembro meses antes disso, dia 24 de janeiro, meu pai me ligando - inacreditavelmente eu estava no mesmo lugar que mais tarde atenderia a outra ligacao, no tel efone do bar da loja que eu trabalhava - ele tinha um medo na voz, beirando o desespero ele me falou: filha, fizeram a biopsia, eh um cancer de classe 4. Logo em seguida ele mesmo me explicou que este cancer nao tem cura, e que qalquer tratamento feito eh apenas paleativo, ou seja, os medicos nos deixaram sem muita esperanca. Obviamente minha mae nunca ficou sabendo desse disgnostico.
Eu realmente nao quero entrar em detalhes desses oito meses ateh a ultima ligacao, nao eh preciso, bastar saber que ela realmente tentou bravamente lutar contra algo que, tinhamos sido avisados, nao teria como vencer.
A ultima semana que eu estive em Curitiba, dia 12 de agosto, foi realmente um dos fins de semana mais estranhos, eu nao saberia explicar se nao houvesse o proximo fim de semana. Eu lembro que quando eu estava saindo pra rodoviaria (voltando pra SP), eu abracei ela com forca, olhei nos olhos dela e disse com toda verdade do universo: eu te amo mae, 'tamo junto nessa. Depois disso a gente se abracou e os solucos ficaram abafados no meio de tanto carinho, mas as lagrimas foram inevitaveis.
Algumas semanas antes ela tinha me dito uma das coisas mais lindas do mundo. Eu estava vivendo o drama de ficar longe dela durante aquele momento tao dificil que ela vivia, e pensava seriamente em voltar pra casa, ficar perto dela. E ela, linda e doce como sempre, transformou minha tempestade em ceu azul ensolarado! O que ela disse fica soh pra mim, basta saber que ela tinha o poder de me fazer acreditar em qualquer coisa, ver qualquer horizonte com a tranquilidade que a sabedoria dela me proporcionava. Eu tava em paz.
Ateh que aquela ligacao, de uma sexta-feira particularmente diferente em varios detalhes, tocar meu telefone. Eu nao sei se algum dia eu vou esquecer tudo isso, a voz do meu pai falhando, a minha perna tambem falhando, eu sentada no chao vendo meu mundo a ponto de desmoronar. Eu lembro de naquele momento, e tambem no caminho ateh o aeroporto, tentar ver minha vida como seria dali em diante, e me agarrar na possibilidade de um milagre.
Eu lembro de cada detalhe que seguiu aquela ligacao, eu segurei o choro, subi na minha sala, falei ao telefone com minha prima (que tb era uma dos meus patroes), expliquei todos os detalhes do meu trabalho pra minha colega, desci as escadas pro primeiro andar como se eu flutuasse, eu ainda nao sentia minhas pernas. Lembro de todos atonitos, me abracando, me desejando forca, todo mundo sentiu comigo, eu sei. O motorista da loja foi comigo buscar meu namorado no trabalho dele, eu nao teria conseguido pensar, talvez nam sair de SP sem a ajuda dele naquela hora. Passei em casa peguei uma meia duzia de calcinhas e fui pro aeroporto.
Quando eu cheguei em Curitiba o clima era todo outro. Eu estranhei e ateh pensei que talvez meu pai tivesse exagerado quando me ligou. Mas o fato eh que ele me falou que a medica havia previsto que ela nao sobreviveria ao final de semana. Ele nao diria isso soh pra me assustar, eh obvio. Minhas irmas me levaram ao hospital, meu pai me buscou na portaria, jah era mais de 11:30 da noite.
Minha surpresa foi ver a minha carequinha (ela tinha perdido os cabelinhos de milho na quimioterapia) sentada na cama, batendo papo, e logo me dando bronca por querer dormir com ela lah e deixar meu namorado sozinho, sem nenhuma comida, nem uma cama arrumada pra descancar! Ela nao tinha nada de morte perto dela, tava muito viva, eu nao conseguia entender. Fui pra casa mais aliviada, tendo em mim a certeza de que ela iria pra casa no dia seguinte, contradizendo toda medicina.
Eu tava errada, na manha seguinte eu acordei as 8:30, liguei pro meu pai e ouvi muitos gritos, gemidos ao fundo. Perguntei e ele confirmou que era ela. Lembro do tom aterrorizado dele dizendo: filha, eu acho que ta comecando. Eu, de um pulo, cheguei no hospital. Posso dizer que o quadro que eu tinha visto ha menos de 10 horas antes tinha simplesmente evaporado dali. Meu pai quase chorando pediu pra eu ficar com ela enquanto ele ia do lado de fora respirar. Eu sei o quanto era dificil pra ele ver minha mae naquele estado. Ela mal respirava, sentia muita dor e gritava muito. Eu sei que minha mae era como eu, lidava muito bem com dor, se reclamasse podia ter certeza de que era muita dor. Imagine agora que ela gritava! Nessa altura jah tinham dado a ela 5 doses de morfina, sim morfina. Quando eu chamei a enfermeira, a pedido dela, tudo que ela pode fazer foi aplicar mais uma dose de dipirona. Dipirona??? Isso eh pra dor de cabeca, nao pra essa dor que ela esta sentindo! Nesse momento ela me perguntou se eu tinha visto ela aplicar o remedio, eu disse que sim, ela continuou: eles deve estar soh fingindo, essa dor nao passa.
Alguns minutos depois ao dor ainda permanecia, e ela comecou a falar desconexamente . No meio disso ela perguntou sobre minhas gatas, e esse foi o caminho que eu achei pra fazer dessas ultimas horas dela mais suaves, menos aterrorizantes. Eu me sentiria melhor em ouvir historias engracadas (ou nao) do que ouvir gente chorando, medico falando, aparelho bipando. Logo em seguida da historia das minhas gatas ela foi induzida ao coma, pois nao havia mais remedio pra dor. E eu nunca vou esquecer o olhar dela, e literalmente as ultimas palavras: filha, eu te amo muito, muito mesmo, mas eu nao aguento mais. Eu quis, mas nao chorei.
O medico explicou que a falencia dos orgaos tinha acabado de comecar. Falencia dos orgaos eh um nome elegante pra uma coisa tao terrivel. Minha mae estava desligando, como uma maquina, parte por parte. E por isso da dor tao grande, eu imagino que era gigante. O medico tambem explicou que a medicina nao pode afirmar mas acredita que, uma pessoa em coma pode ouvir e entender o que falamos, mesmo sem reagir a tal coisa.
A partir desse momento eu acho que realmente me superei. Eu nao chorei, quando quis eu fui ao banheiro, me olhei no espelho e disse pra mim mesma: voce deve isso a ela, "be brave"! Eu fiz tudo que estava ao meu alcance, falei do futuro mesmo sabendo que ela nao estaria nele, falei coisas engracadas, falei coisas serias, contei historias de todos os tipos, falei com amor, com o amor que eu sempre tive dela. Eu lembro de ter dor na lingua de tanto falar, eu quis que ela ficasse bem. Eu cantei, eu fiz massagem, eu esquentei a mao dela. Todo mundo apareceu la, familia, alguns amigos, alguns tinham ar de despedida, e eu fiz com que sorrissem antes de olhar pra ela, nao queria ninguem se despedindo de alguem que estava soh dormindo, e nao morta, e possivelmente poderia entender.
Eu nao quis, mas perto de 3:30 me levaram pra fora da UTI pra eu comer alguma coisa, como se eu sentisse fome naquela hora. Eu mordi tres ou quatro pedacos do meu sanduiche, eu soh pensava nela, e nos ultimos momentos que eu tinha com ela, eu queria estar com ela. Sem que ninguem percebesse eu corri pra dentro do quarto outra vez, minha tia e minha irma mais velha estavam lah. Quando eu entrei minha irma saiu, ninguem conseguia realmente ficar com ela. Era tanto sofrimento.
Nao passaram nem 15 minutos que estava ali, um dos aparelhos que pisca, apita e me causa pesadelos ateh hoje, mostrou o que aqui (USA) eles chamam de flat line, ou seja, um linha reta, sem movimento algum. E eu entao percebi que essa falta de movimento tambem ocorria aos pulmoes dela. Ela parou de respirar. Eu pulei por cima dela, apertei o botao que chama o enfermeiro, olhei pra ela e comecei a implorar: mae, respira, respira por favor... Sem sucesso. A multidao de enfermeiros chegou, colocaram uma mascara, comecaram a fazer o trabalho deles, pediram que eu saisse e o medico chegou. Olhou pra mim - a gente jah tinha falado sobre isso antes - perguntando a minha decisao sobre liga-la em aparelhos (pra mante-la "viva"). Pedi que minha tia chamasse meu pai, era uma decisao e tanto pro meu tamanho. Ele chegou e disse que nao sabia o que fazer: o que voce acha filha? Outra vez a decisao caiu em mim. Eu disse nao.
Voltei pra minha mae, pedi pra desligar o apito da maquina, meu pai correu na sala ao lado, era dificil demais, dolorido demais. Eu tirei a mascara, abracei ela, e deitei no peito dela e fiquei ouvindo um coracao forte, batendo ritmado, nessa hora era praticamente o unico lutando por viver naquele corpo. Eu ainda nao tinha chorado, nao era suposto faze-lo naquela hora. Eu soh abracei bem forte, eu tentei segurar ela comigo, pra mim, pra sempre. Nao deu. Eu achei egoismo e entao cheguei perto, falei no ouvido dela com todo amor que achei dentro de mim: tudo bem mae, ta tudo bem, vc pode descansar, a gente vai ficar bem, a gente vai cuidar um do outro e vamos ficar bem, pode descansar, eu te amo. E voltei a deitar no peito dela. E entao, 3 segundos depois disso o aparelho apitou outra vez, agora com outra flat line. E eu parei de ouvir o coracao, olhei pro medico e ele soh afirmou com a cabeca. Ela tinha partido.
Tudo que precisa ser feito nos momentos seguinte sao terriveis. Escolher uma roupa pra vestir nela pro velorio, limpar o armario de roupas dela, dividir as joias, decidir o que fazer com cada um dos pertences dela. Achar o dinheiro que nos levaria pra Buenos Aires, como tinhamos combinado meses antes, doeu demais. Os dias seguintes foram de uma dor inacreditavel, quase dilacerou meu peito. A falta dela gritou naquela casa em voz tao alta, eu mal podia suportar. Tudo que eu queria era chorar, dormir, negar. Eu queria ela comigo, ainda quero, isso nunca vai mudar. Mas naquele momento aquela ferida tinha acabado de ser feita, ainda jorrava sangue.

Bem, essa eh a historia toda de um ano e meio atras, ela ainda doi, eu ainda choro, tem dias que eu ateh vejo minha mae em alguem na rua, eu falo sobre ela e como ela todos os dias. Sonho com ela varias vezes, algumas vezes ela estrela o papel de figurante e outras de protagonista. Fato eh que ela nunca deixou de ser minha mae, nunca vou deixar de ser sua filha, e com isso vem o nao deixar de amar, nao esquecer e tudo mais.
Mas agora eu acredito que existe espaco pra eu contar dela, de mim, talvez de voce. Mas deixar esse dia lah no passado, tentando deixar tambem a dor.

Esse era o sorriso de risquinho dela! Linda.

quinta-feira, março 05, 2009

aprendizado

aprendi que o amor tem urgencia
que pessoas sao valiosas
que amigos sao tesouros particulares
e que familia eh raiz do coracao

aprendi que "eu te amo" nao eh adiavel
porque amar eh urgente